terça-feira, fevereiro 06, 2007

Que vida devo defender?

Texto – Miguel Linhares

Confesso que não estava muito disposto a comentar publicamente este assunto que não só está na ordem do dia, como nos entope a paciência em todos os meios de comunicação social diariamente. Mas ouço e leio tanta estupidez que não consigo ficar calado enquanto cidadão!
Em primeiro lugar – e prestando o devido respeito aos visados – não percebo o papel da igreja neste assunto. A mesma igreja que até há bem pouco tempo nos condenava por usarmos preservativo e indo mais longe, ainda defendia as relações sexuais como acto quase restrito à reprodução da espécie. Todas estas ideologias com dois mil anos de uso, não são mais do que isso mesmo. Ideologias com dois mil anos. No entanto, e ainda focando mais um ponto neste assunto, achei engraçado um panfleto que todos nós recebemos em casa que tinha como titulo o seguinte: “Descubra o que pode acontecer em Portugal no ano em que se comemoram os 90 anos das Aparições de Nossa Senhora em Fátima.”. Em jeito de pura propaganda, é-nos enviado um manifesto – chamo-o assim – apelando ao Não no dia 11, dramatizando um pouco o cenário e, claro, fazendo-nos lembrar qual a resposta que a Santíssima Virgem (?) espera de nós. Para além disso, aproveitando o momento, convidam-nos a preencher a ficha de participação na campanha pela vida e, entre as várias opções, podemos encomendar o livro “O Rosário da Vida”, que virá acompanhado de um terço por 10 Euros, 15 Euros, ou mais, se preferirmos. Bem, até a minha mãe de 72 anos, católica, crente em Deus sem a mais ténue dúvida, achou isto desadequado!
Quanto ao assunto que interessa realmente reflectir, a despenalização do aborto, convém mencionar que em ambas as partes, tanto pelo Sim, como pelo Não, muitas barbaridades já foram ditas. O pedido do Presidente da República para que este debate público fosse sereno, não tem surtido muito efeito e diz-se e faz-se tudo. Aqui todos são culpados ao tentarem defender os seus argumentos. Quando penso na pergunta que nos é colocada e pensando em tudo o que acontece neste país – e que já aconteceu a pessoas que conheço – não posso responder de outra maneira que não seja um conciso Sim! E aqui não só estou a defender a vida da mãe, que por inúmeras razões não deve ter a criança, como estou a defender a vida da futura criança que, na maioria dos casos, se vier ao mundo vai ser para sofrer.
É necessário educar as pessoas e sensibilizá-las para o planeamento familiar, mas até lá, há que dar a liberdade de escolha para quem pretender interromper a gravidez quando assim entender. Há que haver a liberdade de escolha, quem for contra não faça, também tem essa liberdade de escolha. Aí reside a democracia. Acho que é muito hipócrita pensar-se que alguma mulher no seu perfeito juízo – por mais analfabeta e ignorante que seja – realize um aborto como se de um modo contraceptivo fosse! Nenhuma mulher irá fazer um aborto com facilidade e com malvadez, como já li algures. Nenhuma mulher vai a clínicas do continente (algumas de grandes senhores doutores, se calhar, objectores de consciência (!)) ou a Espanha gastar balúrdios, correndo perigo de vida por vezes e realizando intervenções suspeitas ao nível de higiene. Ninguém faz isto de ânimo leve. Logo, não só pretendo defender a vida destas mulheres, como destas crianças, que se o chegarem a ser, não vão poder crescer como tal. E isso poderá acontecer por inúmeras razões: falta de capacidades económicas, psicológicas, rejeição ou desinteresse dos pais, ou pior, abandono que resultará numa vida infernizada em orfanatos ou similares. E, por favor, não me venham com a história que existem soluções como entregar a criança para adopção, pois sabemos muito bem o quanto custa adoptar uma criança neste país! Até que toda a burocracia esteja solucionada, até que parem de vasculhar a vida dos futuros pais até ao mais ínfimo pormenor, já passaram anos e continua a criança a sofrer em qualquer uma instituição, sem pai, nem mãe.
E irrita-me ver mulheres que ao tentar não enterrarem a sua vida com a vinda de uma – ou mais uma – criança e muitos mais custos no seu dia-a-dia, sejam julgadas em tribunal e condenadas. Quando essa mulher devia era ser apoiada pelo estado, tanto na realização do aborto acompanhado, como depois numa educação e sensibilização e acompanhamento. Prefiro pensar nos que estão cá a sofrer do que nos que podem vir para cá sofrer. É uma escolha que tem que ser feita, apesar de parecer um pouco gélida. É por isso que para além de apelar a uma luta sem tréguas ao absentismo, afirmo, sem medo, que a minha escolha no dia 11 de Fevereiro vai para o Sim à liberdade de escolha, o Sim ao fim da despenalização do aborto e o Não a este marasmo puritano, o Não à criminalização do aborto.
Mantendo-se esta lei, mantém-se o problema e não se iludam, as mulheres vão continuar a abortar em todo o tipo de condições que lhes sejam impostas, porque precisam, porque assim escolheram, mas que infelizmente vivem num estado de direito que só o é para algumas coisas…

Notas:

Sugestão de leitura intemporal: “O Aborto – Causas e Soluções”, de Álvaro Cunhal. A tese final de Álvaro Cunhal, apresentada em 1940, no 5º ano na Faculdade de Direito de Lisboa.

A Associação do Planeamento da Família diz o seguinte: “Fazer um aborto nunca é uma decisão fácil, mas as mulheres têm vindo a fazê-lo desde há milhares de anos, por muito boas razões. Sempre que uma sociedade proibiu o aborto, apenas o fez entrar na clandestinidade, onde ele se tornou perigoso, caro e humilhante. Em Portugal, uma em cada quatro mulheres já fez, pelo menos, um aborto clandestino! Este é um grave problema de saúde pública, afectando centenas de milhar de mulheres em idade fértil e sexualmente activas. Constitui mesmo a segunda causa de morte materna. Reconhecemos que o Planeamento Familiar é essencial para diminuir o número de gravidezes indesejadas embora, na prática, não resolva totalmente o problema. Porque nenhum método anticoncepcional é infalível e porque existem lacunas nas acções de Planeamento Familiar.”.

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