quarta-feira, janeiro 24, 2007

As Marias de hoje que abortam

Este senhor foi dos poucos políticos, no verdadeiro sentido da palavra, a actuar na nossa região. Conheci-o pessoalmente há uns largos anos atrás, quando era Director Regional da Cultura, cargo que desempenhou melhor que ninguém e que, infelizmente, deixou muitas boas ideias quando saiu, mas que ninguém soube levar avante. Ele não falava nos jovens e nas suas capacidades de "boca cheia", apoiava esses mesmos jovens e as suas qualidades artisticas e culturais e tinha projectos para eles. Quem lhe seguiu naquele posto, não deixa saudades de nenhum tipo... Enfim!
Além de variadas qualidades que este senhor possui, a da escrita já é mais do que conhecida por parte dos açorianos. Crónicas semanais saem no Açoriano Oriental e no Diário Insular (que eu saiba é só nestes dois...). Todas sempre muito interessantes, reflectidas e - qualidade que sabe dominar muito bem - quase sempre recorrendo à ironia, como recurso estilístico de grande valor. Encontrei no Açoriano Oriental, esta semana, uma daquelas crónicas que para além de ser bem pensada e escrita, dá uma resposta muita subtil e inteligente a alguns católicos-puritanos-contra-o-aborto-e-demais-actos-demoníacos, sendo este um assunto actual e que esta crónica ajuda a reflectir. Deliciem-se!

Texto - Luiz Fagundes Duarte / Fonte - Açoriano Oriental

As Marias de hoje que abortam

Fiz um esforço danado para resistir à tentação de glosar as afirmações de um médico cá da ilha, lidas nas páginas do Diário Insular, segundo o qual “o aborto nos Açores ‘não faz qualquer sentido’, tendo em conta todas as condições preventivas que são dadas às mulheres através dos Centros de Saúde”; o mesmo médico acha que “as mulheres açorianas têm todas as condições, gratuitas, por parte do Governo Regional, para evitarem a gravidez indesejada através dos mais diversos métodos anticoncepcionais”, pelo que “uma eventual lei que possa vir disponibilizar o aborto, para além das regras legais já existentes”, “não tem qualquer razão de ser”.
O clínico ilustre acaba por concluir que, cá nos Açores, “só engravida quem quer”. Eu acho que não conheço este médico, mas tenho uma vontade danada de concordar com ele – para depois dizer, recorrendo ao critério da analogia e puxando a brasa à minha sardinha, que cá nos Açores o analfabetismo e a ignorância não fazem qualquer sentido porque existem escolas públicas, gratuitas e obrigatórias, disponibilizadas pelo mesmo Governo Regional, ao alcance de todos os cidadãos. De onde me seria lícito concluir que hoje em dia só é analfabeto e ignorante quem quer. O pior é que, tal como o analfabetismo e a ignorância, o aborto existe.
E como parece que, a acreditar na voz autorizada que venho a citar, os médicos do nosso serviço regional de saúde se recusarão militantemente a praticar abortos à luz da lei que será aprovada na sequência do referendo do próximo dia 11 de Fevereiro (esquecendo que o Estado que faz essa lei é o mesmo que lhes pagou os estudos e lhes paga o salário), iremos continuar a ter por aí centenas de mulheres (e não por acaso as mais pobres e menos esclarecidas, as que não tiverem dinheiro ou expediente para irem abortar às clínicas privadas – onde se calhar iriam encontrar a prestar serviço, por bom dinheiro, os mesmíssimos médicos que agora se dizem objectores de consciência anti-aborto … nos hospitais públicos), iremos continuar a assistir a centenas de mulheres abortando em vãos de escada, abaixo de qualquer dignidade humana e despojadas dos direitos que a lei lhes confere (uma lei que despenaliza, e não “disponibiliza” o aborto, como certamente por maldade o jornalista colocou nos lábios deste nosso doutor).
Tudo isto com a já sabida bênção da Igreja – a mesma Igreja que venera a arrependida Maria de Magdala dos Evangelhos, porque Cristo a perdoou e aceitou depois de conhecer a sua história de vida – mas deixa que se apedreje as Marias de hoje que abortam, sem se preocupar minimamente em saber porque é que elas o fazem, ou de algum modo contribuir para que elas não tenham que o fazer. O que não é para admirar, dado que se trata da mesma Igreja que há meia dúzia de anos proibia veementemente os crentes de usarem preservativo, e as crentes de tomarem a pílula, mas que agora, com o novo Papa, já acha que sim senhores, viv’òs preservativos… Até porque uma coisa é certa: sendo os portugueses católicos na sua maioria, e estando os católicos, até há pouco, proibidos de verem nas relações sexuais outra finalidade que não fosse a procriação, das duas uma – ou teríamos para aí umas centenas de milhões de habitantes, em vez dos escassos dez milhões que temos, já que a cada truca-truca deveria corresponder sempre uma nova criancinha (e não me consta que os portugueses sejam escassos nessa coisa boa que é o truca-truca); ou então seríamos um triste país em que, como se vê pelas taxas de natalidade, cada cidadão não teria ido além de um ou dois truca-trucas em toda a sua santa vidinha…
No entanto, os nossos fogosos dez milhões de habitantes levam-me a concluir que, nestas coisas da vida, mais do que o direito canónico, o que venceu foi o direito do bom senso – e que o mesmo há-de acontecer, por fim, nesta candente questão da despenalização do aborto.

Sem comentários: